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domingo, 4 de setembro de 2016

A história por trás da estória. III

As diferentes regiões do Mundo das Crianças foram caracterizadas por falares ou dialetos próprios. Esses falares são usados apenas nos diálogos e ajudam a construir o cenário subjacente à trama. A decisão de incluí-los no texto foi fruto de outro longo processo de reflexão e experimentação.

Nos Apêndices de O Rei Adulto apresento seis principais falares/idiomas: o Sulino, o Nortenho, o Neotamano, o Tammanor, o Gandaio e o Abanheenga. Além desses, menciono como falares restritos a comunidades mais reduzidas o Alto Terense, o Astórgico, o Narônico e o Calô. A Lingua do Pê seria um idioma infantil à parte, usado apenas em situações de espionagem ou festivais. Além disso, certos personagens usam idioletos bem marcados.

Em meus manuscritos produzidos entre 1991 e 1997 não havia nenhuma distinção nos falares das crianças de cada reino, nem tampouco idioletos. Toda essa variedade linguística foi introduzida a partir de 1998, devido a dois "ganchos" deixados no manuscrito:
  1. Em 1992, fiz a primeira divisão dos reinos em províncias e escolhi nomes de cores para as províncias tamatiscas. Os nomes da maioria dessas cores foram tirados da heráldica, e não do vocabulário comum do português. Ex: goles (em vez de vermelho), sinople (em vez de verde), etc. Essa escolha foi justificada face um suposto conservadorismo das crianças tamatiscas em comparação às demais.
  2. Meses depois, descrevi as crianças que vivem na floresta de Grínkor: o povo da mata. Provavelmente por influência cultural, representei-os com um quê de índios sulamericanos.
Foi a partir da relação identitária que estabeleci entre o povo da mata e índios que me vi instigado a representar seus diálogos num idioma diferente. Em vez de usar um idioma artificial e completamente arbitrário, decidi que usaria o próprio Tupi Antigo nesses diálogos, como uma forma de valorizar a cultura brasileira. Essa tarefa teve início em 1998, estimulado pela aquisição do recém-lançado Método Moderno de Tupi Antigo, do Eduardo Navarro, que estudei a fundo com o propósito de escrever diálogos tupis gramaticalmente corretos. Nos anos seguintes ampliei o estudo do Tupi Antigo a partir de livros de Lemos Barbosa e Frederico Edelweiss, encontrados em sebos ou na biblioteca da FFLCH/USP.


À época também estudava Alemão e aperfeiçoava a fluência em Esperanto. Estava cada vez mais interessado em Linguística. E um dos livros da FFLCH que acabou prendendo minha atenção foi Estruturas Trecentistas, da Rosa Virgínia Mattos e Silva, que apresentava uma "gramática" do Português de 1300. Emprestei o livro e comecei a lê-lo por mero interesse intelectual. Ao cabo de alguns meses, adquiri um exemplar dele, bem como algumas gramáticas históricas da Língua Portuguesa.

Quanto mais o estudava, mais me perguntava se não poderia também usar o Português Antigo em algum trecho do Rei Adulto. Seria algo associado aos tamatiscos, devido ao seu gosto mais tradicionalista e conservador. Todavia, por essa época, eu já tinha claro que o Tamatich fora formado pela união dos reinos rivais de Tamma e Ticch, um rigidamente espartano e o outro hedonista e filosófico. O Português Antigo não se encaixaria bem na boca de um ticco, mas se adequaria perfeitamente aos tammanos. Ainda assim, considerei que longos diálogos em Português Antigo poderiam soar incompreensíveis ao leitor, devido à quantidade de palavras arcaicas que seria preciso empregar. Por isso, decidi por algo intermediário: um falar artificial, que conteria uma mistura arbitrária de diversas formas gráficas da história da Língua Portuguesa, isto é, seguiria parcialmente a gramática trecentista, teria escrita etimológica, alguns arcaísmos, acentuação gráfica já abolida, entre outros. Assim nasceu o "Neotamano":

— Devemos invadir Ístar e aprisionar tôdalas creanças que usam taes imanes porcarias!

Criei o Neotamano para permitir o uso de algumas estruturas gramaticais antigas, sem prejudicar muito a compreensão da frase. Ele é explicado no universo da história como um falar de compromisso surgido da convivência forçada entre ticcos e tammanos, após a unificação do Tamatich. O Neotamano seria uma evolução do Tammanor, o qual representaria exclusivamente o Português de 1300 e que ficou reduzido a curtos diálogos, que empregam palavras reconhecíveis, ainda que em roupagem arcaica:

 — Deueras importamte, cõ seu perdom. Uossa Ualentia importars’ia de a meu jrmãao mays nouo padrĩhar, qual jrmãao emcorporado aa guarda paaçal oje sera?

Os demais falares surgiram em consequência dessas decisões de incorporar à caracterização dos reinos infantis variantes linguísticas. Assim, tomei o rio Lennx como a grande fronteira linguística natural entre o Sulino e o Nortenho, representados pelos Português Brasileiro e Europeu, respectivamente:

— E eu cá dou de baldar-me justamente quando as coisas começam a ficar divertidinhas? (Nortenho)

— Com’é, não vai me dizer que bicho é esse que leva três semanas pra ser pego por mais de uma dúzia de guris? (Sulino)

Para o Gandaio usei uma modalidade de português informal bastante oral, carregada de gírias, praticada em áreas pobres do sudeste brasileiro:

— Fui só dá um rolé na cidade pra achá algo de comê. Mas os trol viu eu e me cegô dinovo. Logo passa, toda’ zas vez foi ansim. 

Mesmo dentro do Sulino e do Nortenho, espera-se alguma variação ao longo de cada reino, embora mais suave. Destas, a mais evidente fica por conta do Nortenho usado pelos macebóis, que se inspira na ordem sintática e em derivações lexicais do Alemão adaptadas ao Português Europeu, como se fossem crianças que pensam em Alemão mas falam em Português:

— Venho-lhe sopedir que aos viajantes que seus guardas hoje nos limites da floresta aprisionaram liberte.

Uma ordem sintática não natural ao Português também foi usada nos diálogos de crianças do povo da mata quando elas se expressam em Nortenho. Nesse caso, uso ordem sintática e estilo do Tupi Antigo, como se fossem erros naturais de um falante que se expressa em idioma diferente do materno:

— Vos ter como hóspedes nos honra muito. Ficai todo o tempo de vosso querer.

A tabela mostra uma comparação ligeira entre os quatro principais falares da história:

Nortenho Sulino Neotamano Gandaio
mesmo para um cavaleiro mesmo pra um cavaleiromeesmo pera um cavalleiro mermo prum cavalero
Não o conheçoNão o conheçoNom no conoscoNum conheço ele
Fá-lo-ei Vou fazê-loFal-o-ei Vô fazê iss'aí
Também eles se calaramEles também se calaramTambém elles calárom-seEles tumém se calaro
Não há perigoNão tem perigoNom há peligroNum tem pirigo
 O que fazeis aqui?O que fazem aqui?O que acá fazeis?Quê que cês faz aqui?

No mapa abaixo, vê-se a distribuição espacial desses falares no Mundo Mirim:


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