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sexta-feira, 30 de junho de 2017

Etimologia. III. Nomes dos Personagens


Quando se escreve um livro ou conto de ficção, a escolha do nome de um personagem não é uma tarefa trivial. Tal como fazem os pais ante o nascimento de um filho, essa ação é ponderada: o nome precisa acolher o personagem e vice-versa, especialmente no caso das personagens principais.

Frequentemente, os nomes possuem significado, num idioma natural ou artificial. Por exemplo, a maioria dos nomes usados por Tolkien possuem significado em um de seus idiomas artificiais. Por vezes são anagramas, como Iracema, de José de Alencar, que admite tanto etimologia tupi, quanto a de anagrama de "América". Os nomes podem também fazer alusões a aspectos da personalidade do personagem: o protagonista de A História Sem Fim se chama, em alemão, Bastian Balthazar Buchs; seu sobrenome soa como um plural mal formado de "Buch", livro, uma de suas paixões, justamente a que o leva à aventura em Fantasia.

Todo nome possui uma história, uma motivação, uma origem, mesmo que seja um tanto banal.

Em duas postagens anteriores, expliquei a origem dos nomes dos reinos e das províncias em O Rei Adulto. Conto agora sobre a história por trás do nome de algumas personagens.

A maioria dos nomes das crianças de O Rei Adulto caracteriza-se pela variação de um nome mais usual. Isso pode passar despercebido à primeira vista, até porque alguns nomes ficaram pouco reconhecíveis. Esses nomes variantes surgem do contexto que usei para representar o "mundo das crianças" como um local de imaginação que elas visitam quando brincam. Nesse mundo imaginário, seus nomes reais se modificam, ganhando uma versão mais mágica e incomum. Todo mestre de RPG deve ter passado pela situação de preencher a ficha de personagem de um novo jogador e este, ao escolher o nome, usa seu próprio nome, ligeiramente modificado. Foi esta ideia que me norteou.

Apesar disso, também usei nomes com significado, nomes alusivos, anagramas e outros que compus sem motivo claro, por associação sonora. Eis alguns:

Êisdur Árland. É o protagonista da história. Seu "nome real" é Eduardo. Quando criei o nome Êisdur, buscava um nome curto, que tivesse uma boa sonoridade e que parecesse diferente. Tendo acabado de ler "A História Sem Fim", o nome Atreyu era o modelo que eu buscava. Em termos de sonoridade, apreciava a força do nome Excalibur. Juntando essas ideias, parti do apelido de meu irmão (Edu) e criei Êisdur. O acento circunflexo é para deixar claro que a pronúncia é segundo as regras do Português. Embora possa parecer, pela forma escrita, Êisdur nada tem a ver com Isildur, de Tolkien. O sobrenome Árland é uma modificação de Orlando.

Eisdras. É o irmão mais velho de Êisdur. A escolha desse nome foi fruto da confluência de duas ideias. Em Tolkien, muitos membros da família costumam ter nomes similares, que apenas variam em algumas letras (Fingon, Fingolfin; Arathorn, Aragorn; Húrin, Túrin). Eu já tinha escolhido o nome Êisdur. Daí escolhi Eisdras, como uma variante do primeiro. Mas também como uma lembrança ao primeiro amigo que fiz, no primeiro ano escolar, quando tinha 7 anos, o qual se chamava Esdras.

Wáldron Gastrano. Seu "nome real" é Oswaldo. Wáldron tem 6 anos e é cheio de vivacidade como o personagem Calvin, dos quadrinhos de Bill Waterson. A inspiração para o nome foi justamente Waterson, como referência indireta a Calvin. A sílaba final -dron sofreu influência do nome do filme Tron (1979), que tinha uma sonoridade que sempre me atraiu. O sobrenome Gastrano, por sua vez, vem de Gastão. Com base em sua origem, o W inicial deste nome deve ser pronunciado como semivogal U, e não como V.

Harsínu Sterinax. Seu "nome real" é Arsino. O cavaleiro Harsínu é o personagem que mais evoca Atreyu, da História Sem Fim. Daí vem o -u da sílaba final. O sobrenome Sterinax foi criado por conta da sonoridade que me agradou; mas sua sílaba final -ax é inspirada em Artax, nome do cavalo de Atreyu.  Harsínu também tem um cavalo, chamado "Fogo de Palha", numa jocosa e infantil referência à velocidade de sua propagação.

Marsena Sterinax. Seu "nome real" é Marcela. A escolha foi feita para evocar a similaridade de nomes entre membros de família, tal como em Tolkien e já explicado no par Êisdur/Eisdras. Desta vez, o par é Harsínu/Marsena.

Áymar Resphel. Seu "nome real" é Mário. Na época em que criei este personagem, circulava pela minha universidade um panfleto conspiracionista de Aimar Biu. O panfleto não fazia sentido algum, mas achei o prenome do autor bom para um personagem. Mudei a tonicidade da palavra e batizei assim o principal mago da minha história. Quanto ao sobrenome, criei por experimentação; sua sílaba final -el é por conta de Nicolas Flamel, famoso alquimista medieval. Construí o nome de sua irmã, Merrayl, seguindo o mesmo critério já exposto para nomes similares entre membros da família, embora, desta vez, com mais liberdade de composição: AY-MAR > MARR-AY > MERRAY > MERRAYL.

Ernesto Molicári. Ernesto é o único dentre os personagens principais que tem um nome usual, comum. Isso se deve a que Ernesto se junta ao grupo de má vontade, sem querer participar dele. Inicialmente, ele não quer usar a imaginação e "brincar". O nome Ernesto, indiretamente, se relaciona com o ex-presidente Ernesto Geisel, que governava o Brasil nos meus anos de infância. De algum modo, provavelmente absorvendo trechos de conversas de meus pais, percebia o medo e respeito que o presidente exercia sobre a sociedade. E nas minhas brincadeiras com meu irmão mais novo, inventei de batizar de Ernesto um jipe amarelo que eu tinha, declarando-o presidente dos demais brinquedos. Na prática, durante nossas brincadeiras, sempre que o jipe Ernesto aparecia, toda a brincadeira cessava, pois ele vinha impor a ordem... Eu acho divertido e curioso como, já adulto, chamei de Ernesto justamente um menino que não queria brincar. Quanto ao sobrenome, busquei um que soasse italiano, pois uma ascendência italiana me parecia compatível com a descrição do tipo físico de Ernesto.

Ctara Bergrak. Seu "nome real" é Clara. O encontro consonantal CT foi inspirado na palavra grega χθονιος, khthonios, relativo à terra, subterrâneo. Isso se deve ao cenário inicial que usei para os eicsos, exilados num complexo de cavernas. A mesma palavra foi usada em ctonitas, uma raça de criaturas fantásticas que habitam o subsolo e é aliada aos eicsos. De um modo geral, talvez devido a essa escolha inicial, usei encontros consonantais bem marcados na maioria dos nomes eicsos: Ctara, Ortécpala, Ilbro, Srívenc, Andreu, etc. O sobrenome Bergrak foi escolhido apenas para ter sonoridade e encontros consonantais.

Há em O Rei Adulto cerca de duas centenas de personagens, a maioria dos quais é apenas figurante. Muitos seguem essa regra de variante de nome comum: Quérelim (de Carolina), Andreu (de André), Anrik (de Henrique), Patrev (de Patrick). Há nomes escolhidos para serem engraçados: Soslaio (da expressão "olhar de soslaio", i.e. com suspeitas), Uaioé (um nome composto exclusivamente por vogais, que evoca AEIOU, um termo típico da idade escolar), Nhaca (que coleciona cheiros), etc. Um nome criado de anagrama é Ortécpala; não vou contar o nome original, fica como instigação ao leitor para conhecer esta história e divertir-se com os pequenos detalhes que ela guarda.

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