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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

As ordens de cavalaria

Houve um tempo em que as ordens de cavalaria eram numerosas no Mundo Mirim. Isso foi muito antes da Guerra das Águas, antes mesmo da unificação do Tamatich. As principais cidades tinham suas ordens e guildas de fidalguia, ápice de reconhecimento ao qual almejavam crianças desde pequenas.

Os tempos, contudo, são outros. E os interesses das crianças também mudaram. Muitas ainda têm os olhos a brilhar quando pensam na cavalaria, mas poucas se candidatam aos longos e estrenuantes treinos. É mais fácil brincar de bandido e mocinho...

No tempo da busca de Êisdur Árland pelo Rei Adulto, havia apenas quatro grandes ordens de cavalaria no Mundo Mirim: a Ordem dos Cavaleiros de Baltar, a Ordem dos Cavaleiros de Lize, os Cavaleiros Azuis e a Mui Leal Ordem. As duas primeiras eram as ordens oficiais dos reinos de Teres e Ístar, enquanto as duas outras tinham sede no Tamatich, nas cidades de Doma e Verna, respectivamente.

O caminho para tornar-se um cavaleiro era árduo. Para habilitar-se ao título, a criança servia antes como escudeiro de um outro cavaleiro a partir dos 6 anos, depois como pajem, a partir dos 9 anos. A idade mínima para ser nomeado cavaleiro era 11 anos, mas a maioria só o conseguia após os 12 anos, pois era preciso provar seu valor com grandes feitos. 

A acolada: cerimônia de investidura de um cavaleiro.

A cerimônia de investidura de um novo cavaleiro era chamada de "acolada". Podia ser presidida por um príncipe/princesa, ou pelo prior da respectiva ordem. O cavaleiro deveria proferir o juramento aos ideais da ordem, reconhecendo que perderia o título caso quebrasse seus votos.

Uma versão mais simples da acolada era também realizada nas cerimônias de sagração de suprapátrias e buscandantes. Apenas o regente de um reino poderia sagrar suprapátrias; mas todo prefeito de cidade ou suprapátria poderiam sagrar buscandantes. Wáldron preside uma cerimônia desse último tipo no capítulo XIX de O Rei Adulto:

— Convenhamos, Amanara! — replicou Wáldron. — Nossa palavra não convencerá ninguém!
— A minha não... A tua sim! És suprapátria e, como tal, podes nomear buscandantes.

Harsínu Sterinax, Cavaleiro de Baltar
Uma vez nomeado, o cavaleiro poderia tomar cores e um símbolo para identificá-lo, se sua fratria já não os tivesse. Ao ser investido, Harsínu tomou o azul, da Ordem de Baltar, e juntou-o ao unicórnio dourado, para representar sua posição como Cavaleiro de Baltar e Guardião da Honra do Tamatich. Esse último título, de fato, é um grau honorário da Mui Leal Ordem, concedido a todos os que prestaram grandes serviços à coroa tamatisca.

Os cavaleiros faziam jus ao tratamento de "Vossa Valentia", em deferência aos feitos prodigiosos que os alçaram ao título.

Embora não fosse comum, havia também cavaleiras, inclusive na tradicionalíssima Mui Leal Ordem. Conta-se que, num passado remoto, uma ordem inteira de meninas combatentes foi instituída em Eix. Chamava-se Legião Amazônida. Não é à toa que a alma guerreira nunca abandonou as eicsas, mesmo após sua legião ser dissolvida.

Contudo, a maioria das meninas preferia juntar-se às ordens secretas da natureza, sagrando-se sacerdotisas, astromantes ou druidas.

Além das ordens de cavalaria, havia outros grupos nelas inspirados, embora com alcance mais limitado, tais como, por exemplo, a Guarda de Meninos-Arqueiros (Cap. 1), a Patrulha dos Prados (Cap. 5) e a Milícia Eicsa (Cap. 23). Alguns desses grupos empregavam a acolada e tinham graus hierárquicos tão detalhados como os das ordens de cavalaria.

Em todos esses casos, as ordens de cavalaria e grupos similares serviam a um propósito nobre: permitiam que as crianças se aventurassem felizes e adiassem a vinda do tédio juntamente com a adolescência, que as levaria para o outro lado do Rio das Lágrimas.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O lançamento do volume 1 de "O Rei Adulto"

No dia 20 de dezembro, ocorreu o evento de lançamento do volume 1 de O Rei Adulto, no Observatório do Valongo, instituição onde trabalho.


Essa edição foi publicada pela AZO Agência Literária e corresponde à primeira metade da história completa. Esperamos que a publicação da conclusão seja possível em breve.

Gostaria de agradecer ao Fernando Cardoso e Mariana Carbas, da AZO, bem como ao meu primo Flávio da Silva Costa, que apoiaram e tornaram possível essa edição.

O evento foi prestigiado por cerca de 60 pessoas, entre professores, alunos, amigos e familiares. Todos puderam brindar com a célebre sangria Dragão Festeiro, feita com uvas colhidas nos Montes Baixos, em Teres.

Veja abaixo algumas fotos do evento. E não se esqueça de reservar em exemplar!

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Um conto de Fantasia em Tupi Antigo

"Fundação de São Vicente", por Benedito Calixto de Jesus.
Acervo do Museu Paulista da USP

Quando avançava na escrita de meu livro, em meados dos anos 90, planejava a elaboração de vários pequenos apêndices que serviriam como expansão à história principal. Em 2001, após 10 anos de projeto, decidi que era hora de terminá-la e resolvi incluir apenas os apêndices já redigidos. Um desses foi escrito integralmente em Abanheenga (Tupi Antigo), em homenagem aos caaporas, e aborda a guerra que os dividiu em torno da função desempenhada pelas meninas como líder máximo das aldeias.

Os dois livros com
os quais aprendi
o Tupi Antigo.
Esta história é contada de forma resumida por Amanara, no Capítulo 15 de O Rei Adulto. O apêndice "Marana Ka'aporubixapaba Resé" estendia-a um pouco mais. A ideia de escrever um pequeno conto em Tupi Antigo veio do desejo de usar esse fascinante idioma em um texto moderno, revitalizá-lo, apresentá-lo aos leitores como um tesouro cultural genuinamente brasileiro, algo que nos caberia preservar. À época, a chegada de Cabral ao Brasil completava 500 anos, e a publicação do livro Método Moderno de Tupi Antigo, do Prof. Eduardo Navarro, pela editora Vozes, alimentava meu ímpeto nacionalista.

Escrever o conto seria um desafio duplo: testar meu conhecimento do Tupi Antigo, adquirido pelos livros de Navarro e do Pe. Lemos Barbosa, bem como traduzir num idioma antigo um conto de Fantasia, de um mundo diferente daquele habitado pelos tupiniquins e tupinambás.

Esse apêndice foi incluído na edição independente que lancei em 2015, mas não faz parte da edição atual lançada pela AZO. Decidi deixá-lo de lado porque a proposta atual é simplificar a edição para viabilizá-la a um público maior. Além disso, poucos apreciariam o apêndice posto que não o entenderiam, já que não viria com a tradução. Considerei que é mais adequado apresentá-lo aqui, no blog.

Segue abaixo o apêndice em Tupi Antigo e sua tradução ao Português. Quem já leu o livro poderá comparar com a história contada no Capítulo 15. Em linhas gerais, é a mesma história, mas com algumas informações adicionais.


Marana Ka'aporubixapaba Resé A Guerra pela Liderança dos Caaporas

Oîepé serã r’a'é, ka'á-gûasu-pe, s-era Grínkor tab-usu-pe, marã’-mboxy o tyb-amo. O-pokó’-pokok o îo-esé pitang-etá, ka'apora s-er-y-ba'é. Kó marana nd’o-îkó-é-î marana amõ tetirûã suí, i typ-ag-ûera Mitanga 'Ara. Moîekosup-aba s-esé-te i aîbĩ-ngatu ka'apora supé, i 'anga mombok-ypŷ-á-bo, i pûerab-e'ymb-aba kori îé.

'Y-maran-usu riré i ypy-û. Grínkor îe-ekó-monhang-aba, ka'apora r-emi-motar-eté-puku, îa-î-moarûab Siles, Macebólia R-ubixab-ĩ, ka'apora pytybõ-mbûera i xupé îepé. Marã’-monhang-etá riré nhõ-te ka'apora îekosub-i amõ îe-r-ekó-aba r-esé. Macebólia R-ubixab-ĩ-te ka'apora o-î-pe'á-pá-potar, o emi-motara ka'á-gûasu asŷaba r-esé o-î-á-bo.

Aîpó ka'apora o-î-moaîu-katu. Grínkor-y-pe opá-katu tab-ubixaba mor-ubixá’-kunhã nhe'eng-apîar-i. A'é t-ekó-monhang-ara opá t-ubixaba sosé, opab-ĩ-inhẽ taba o-î-mono'ong-y-ba'é. Siles r-emi-motara aûîé o-î-á-bo-mo, ka'apora r-ekó-bé-saba mondygûer-i-mo.

Ka'á-gûasu-bo, tab-ubixab-etá aîpó ro'yrõ-û. Oîepé taba nhõ-te, Gûarinĩndaba s-er-y-ba'é, aîpó nd’o-î-ro'yrõ-î, o ubixaba kunumĩ-maramotara, Akangatã s-er-y-ba'é.
Akangatã nd’o-î-potar-i o ubixaba nhe'eg-apiá, i kunhã-namo r-esé. Kó ri, Macebólia-ygûara r-e-r-ekó-û mũ-namo.

Ka'á-gûasu i pe'á-pyr-a t-etama mokõî r-upi. Gûarinĩndab-ygûara o-gû-ar t-etam-usu, t-urusu-eté s-ekó-bé-sag-ûera suí. A'é-riré, Akangatã o-akasang-ityk-ityk-ypy mor-ubixá’-kunhã mor-ubixab-amo s-ekó-monhang-aba kunumĩ sosé. O atã r-e-ro-bîar-usû-á-bo, Akangatã gûarinĩ-ybyrá-par-etá Macebólia-ygûara r-eyîa-no mondyb-i, Ybyra'oketá-pe s-e-ro-gûatá-bo, i pogûyra r-asag-ûã’-me. O-î-mo'ang opá amõ taba r-ekó og upi, mor-ubixá’-kunhã îabapa bé-no, mor-ubixab-e'ym-amo taba r-eîá’-saba.

Emonã s-ekó-e'ym-i. Pogûyra i me'eng-y-pyr-ûera kunhã supé, ta kunumĩ o-nho-marã’-monhang ymẽ, ka'apor-ubixá’-gûapyk-aba potá. O morubixá’-kunhã r-esé, ka'apora r-ero-bîar-i. Opá amõ ka'apora tab-usu o-nhe-mũ morubixá’-kunhã supé: Ema'ẽ, Ybyra'oketá, Ybytyratá, Ipopirasuí, Tukatu, Sugûypirangapé.

Akangatã gûasẽ’-me Ybyra'oketá supé, nhe-rana r-obaîtĩ o supé bé o emi-arõ-mbûera sosé. Taba o-s-arõ kaysá-ybaté, morubixá’-kunhã mũ r-emi-monhang-ûera. Akangatã mũ t-atá-u'uba o-gûe-ro-epenhan, mokab-usu o-î-mopok, opá ybyrá-patagûi mombapa biã.

Pitang-etá o-îo-gûe-r-ekó Ybyra'oketá-pe. Marana s-o'ó-etá o-î-mosykyîé, i kûara motyg-ûé, pytu'u-e'ym-amo i moîngó-bo, Ka'a'anga Py'aoby monharõ-mo. Tyg-ûera s-etá: ybyrá s-apy-pyr-ûera, s-o'ó iî ybõ-mbyr-ûera gûarinĩ ambyasy-asy r-esé, 'y upaba-no o-îkó s-ugûy r-emi-mopirã’-mbyr-amo. Ka'a'anga Py'aoby ka'apora o-s-aûsub-usu, a'é-reme-te opá-katu mokanhẽ’-momboî ka'á suí, marã’-moangaîpaba r-esé.

Ybyra'oketá arõ-ana nd’o-syî, nd’i aûîé-î sumarã supé, i popesûa’-katu r-esé îepé.

Marana 'ara amõ riré, Akangatã o eîtyk-e'yma kuab-i, o-îeby Gûarinĩndaba pupé. Kunumĩ-maramotara taba-îar-amo o-îkó-potar, tobaîar-amo-te r’akó s-ekó-û.

Maran-iré, ka'apora t-etama r-ár-i bé, Siles r-emi-me'eng-ûera tobaîara supé.

Kori ka'apora tobaîara îo-e-r-ekó-bé-katu-û.

Pereba-te s-asy îé. S-asy serã îepi.


Diz-se que uma vez, na grande floresta, cujo nome nas cidades grandes é Grínkor, uma guerra torpe aconteceu. Muitas crianças lutaram umas com as outras os chamados caaporas. Esta guerra não foi diferente de outras quaisquer que ocorreram no Mundo das Crianças. Mas suas consequências foram muito ruins para os caaporas, dividindo pela primeira vez sua alma, ferida que ainda não hoje não sarou.

Isso começou após a Guerra das Águas. A Independência de Grínkor, longamente desejada pelos caaporas, foi obstada por Siles, Príncipe da Macebólia, apesar da ajuda que os caaporas lhe prestaram. Somente após muitas batalhas, os caaporas obtiveram alguma autonomia. Mas o príncipe macebol buscava dividir completamente os caaporas, bem como repartir a grande floresta.

Esses caaporas o incomodavam muito. Em Grínkor, todos os chefes de aldeia seguiam a morubixaba-menina. Ela era a que fazia as leis sobre todos os chefes, a que reunia todas as tabas. Se o desejo de Siles se realizasse, o modo de vida dos caaporas seria destruído.

Pela floresta, os chefes das aldeias recharam isso. Mas uma única aldeia não o fez, aquela de nome Guarinindaba, cujo chefe era um menino briguento chamado Akangatã.
Akangatã não queria obedecer sua morubixaba, por ser ela uma menina. Por isso, ele aliou-se aos macebóis.

A grande floresta foi dividida em duas regiões. Os habitantes de Guarinindaba receberam um território muitas vezes maior do que aquele em que viviam. Depois disso, Akangatã começou a lançar dúvidas sobre a liderança da morubixaba-menina sobre os meninos. Confiando muito em sua própria força, Akangatã reuniu uma multidão de seus arqueiros e de macebóis, fazendo-os marchar até  Ybyraoketá, para trespassar suas defesas. Pensava que teria o apoio de todas as outras aldeias e que a morubixaba-menina fugiria, deixando sem liderança o trono da aldeia.

Não aconteceu assim. O poder fora dado às meninas, para que os meninos não mais lutassem entre si para tomar o trono caapora. Os caaporas confiavam em sua rainha. Todas as outras grandes aldeias caaporas aliaram-se à morubixaba-menina: Emaém, Ybyraoketá, Ybytyratá, Ipopiraçuí, Tukatu, Suguypirangapé.

Quando Akangatã chegou a Ybyraoketá, encontrou uma resistência muito maior do que esperava. Protegia a aldeia uma enorme caiçara, construída pelos aliados da morubixaba-menina. Os companheiros de Akangatã lançaram flechas de fogo, dispararam bombardas, destruindo toda a paliçada, mas em vão.

Muitas crianças combatiam entre si em Ybyraoketá. A guerra matou muitos animais, arrasando suas tocas e  asfixiando-os, deixando o Espírito da Floresta irritado. Eram muitas as destruições: as árvores que foram queimadas, os animais que foram flechados devido a fome dos guerreiros, os rios e lagos que ficaram tingidos de sangue. O Espírito de Floresta amava muito os caaporas, mas depois disso ameaçou expulsar todos da floresta,por causa da guerra perversa.

Os defensores de Ybyraoketá não recuaram, não se renderam aos inimigos, embora estes estivessem bem armados.

Após vários dias de guerra, Akangatã reconheceu sua derrota, retornando para Guarinindaba. O menino guerreiro queria ser o tabajara, mas na verdade tornou-se o tobajara.

Após a guerra, os caaporas tomaram de volta a região que Siles tinha dado aos tobajaras.

Atualmente, os caaporas e os tobajaras vivem bem um com os outros.

Mas a ferida ainda dói. Talvez sempre doerá.

NOTA: Na tradução, as palavras tabajara/tobajara compõem um trocadilho em Tupi: tabajara significa "chefe da taba", enquanto tobajara significa "inimigo".

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Primeira resenha no Skoob

A leitora Renata Silva é aficionada por Fantasia. Ela terminou recentemente a leitura do vol. 1 de O Rei Adulto e fez uma resenha muito positiva sobre nosso livro no Skoob. Eis um trecho:

A linguagem foi uma das características que mais me fez rir, além de que me impressionou muito! O autor trabalha com as palavras como poucos, ele tem um domínio que é inexplicável! Ele mistura dialetos regionais, gírias, sotaques, onomatopeias, sons... O final disso é algo interessantíssimo, e não satisfeito, Helio ainda é um ótimo criador de palavras e o livro até traz no final dele um glossário voltado especificamente para essa questão. Com honestidade, eu nunca li um livro cujo o autor trabalhasse tão bem com as palavras, e com uma revisão tão bem feita (eu só encontrei dois erros ao longo de 300 páginas e foram os mais bobos possíveis), está de parabéns!

Leia a resenha completa aqui.

De quebra, Renata fez duas belas fotos do ebook ao lado de mapas de outras obras de Fantasia de sua estante:

{O REI ADULTO} . . "A fogueira costuma ser um local especial para ouvir e contar histórias. As labaredas que se movem como dedos de fogo, a lenha que crepita, a fumaça que sobe para o cimo do céu, tudo isso são ritos solenes, outrora empregados para reverenciar no poder das histórias; porque cada história possui um vínculo secreto com as forças invisíveis que constroem o mundo e, consequentemente, requer toda uma atitude de respeito ao ser narrada." 📖 . . Há algum tempo atrás o Helio me procurou para termos uma dessas conversas literárias, e nessa conversa ele acabou me cedendo o livro dele para leitura. Apesar dele não ter me pedido para comentar sobre ele em nenhum lugar, eu gostei tanto dessa leitura que precisava falar sobre ela! . . Quando pegamos um novo livro em mãos e o abrimos, estamos entrando em um novo mundo, mas geralmente nós só sentimos isso na introdução, com o Rei Adulto as coisas são um pouco diferentes, nós entramos naquele mundo já na folha de rosto e seguimos assim até o final. Isso foi o que me cativou e me prendeu logo: um livro que tem identidade própria do início ao fim, como constatei depois. . . Toda a história acontece dentro do mundo mirim, um mundo em que não existem adultos (só um ou outro idoso), apenas crianças e são elas quem criam suas próprias regras. . . Êisdur é um garoto de 11 anos e meio, que está em busca do irmão mais velho, Eisdras, desaparecido há algumas semanas, o que preocupa muito o menino por saber que o irmão está naquela difícil fase da vida, que é a adolescência e o abandono da infância. . . Êisdur encontra em Baltar não o irmão, mas sim Tsâmar e um jovem ladrãozinho chamado Wáldron, e juntos chegam à conclusão que só quem pode ajudar o menino é o Rei Adulto. O Rei Adulto é tido como aquele que mesmo crescendo nunca deixou de ser criança, e o único que pode trazer as crianças "que se foram", de volta. Mas não é fácil encontrar aquele que na verdade pode ser apenas uma lenda. Tsâmar diz ao neto Wáldron de apenas 6 anos, acompanhar Êisdur em sua busca, já que o pequeno é escoteiro, e assim os dois seguem em uma grande aventura para encontrar o Rei Adulto. . . 🔲 CONTINUA NA PÁGINA DO LIVRO NO SKOOB.
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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Conheça a nova edição de O Rei Adulto!

No próximo dia 20 de dezembro, O Rei Adulto será lançado em versão de livro impresso pela Agência Literária AZO.



A história completa foi dividida em dois volumes. O volume 1 já tinha sido lançado em versão eletrônica em novembro de 2015. É esse mesmo volume que agora terá edição impressa em uma primorosa diagramação feita pela AZO.

Eis algumas fotos de sua diagramação:

A diagramação feita pela AZO inicia cada capítulo com uma página em
estilo de iluminura. As páginas ligeiramente amareladas dão um aspecto
envelhecido ao livro que combina bem com a história.


O livro é composto em Junicode, uma bela tipografia criada para estudos medievais.
As capitulares são da familia de tipos Goudy Initialen, criadas por Dieter Steffmann.

Mapas desenhados a nanquim também foram reproduzidos nas últimas páginas do livro:



O Rei Adulto está em pré-venda pelo site da AZO até a véspera do dia 20. Aproveite a pré-venda, pois o livro estará sendo vendido com 15% de desconto e frete gratuito para quem for buscá-lo no evento de lançamento!

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O Rei Adulto, vol. I, segue para a gráfica

Nos últimos dias, a Agência Literária AZO finalizou a diagramação do volume I de O Rei Adulto, que ganhará assim uma nova edição impressa. O arquivo já foi para a gráfica e esperamos que os livros estejam prontos para venda antes do dia de lançamento, 20 de dezembro.

Fiquem atentos para o período de pré-venda, pois o livro estará em desconto!

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Livros também forjam amizades

Os laços de amizade são a essência do que une o grupo de crianças que se junta a Êisdur Árland em busca pelo Rei Adulto.

A literatura também é capaz de forjar novas amizades, especialmente quando há afinidade de gosto literário. Renata é uma amiga de Instagram, também fã de Michael Ende e outros mestres da Fantasia alegórica. Ela iniciou recentemente a leitura d'O Rei Adulto e presenteou-me com essa linda postagem.

Curta seu instagram para conhecer outras recomendações de livros.


PRIMEIRA LEITURA DE FÉRIAS. 🙆📚😍🎉 . . A literatura é algo incrível e nos proporciona coisas maravilhosas com frequência. Muitas vezes essas coisas estão sempre ligadas à livros e pessoas, ou amizades literárias. 🌻 . . Recentemente tive a oportunidade de conhecer o Helio Jaques, uma pessoa super bacana que se não fosse a literatura, eu não teria conhecido. E o Helio também é escritor, e agora eu terei FINALMENTE a oportunidade de conhecer o trabalho dele, o livro "O Rei Adulto", uma leitura que eu estou mais do que ansiosa para fazer, porque soube que o livro foi inspirado em outros universos literários que eu amo, como por exemplo, A História Sem Fim, Peter Pan e O Senhor dos Anéis. 😱😍 . . ~~"Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas" - C.S.Lewis~~ . . Bom, em breve trago mais detalhes sobre essa leitura, porque agora preciso inicia-la. 😀 . . Obrigada pela oportunidade, Helio! Estou pronta para toda a nostalgia que com certeza o seu livro trará, aliás, acho que precisamos de momentos nostálgicos muitas vezes ao longo de nossas vidas, para que possamos sempre ter a recordação de "o que é ser criança" bem em cima da cômoda do coração. 💙🎠🎏 . . . #OReiAdulto #HelioJaques #Amazon #KindleUnlimited #literaturanacional #instalivros #lendonacionais #instabooks #leianacionais #leiabrasileiros #novosautores #LeiaNovosBr #leitorescompulsivos #Kindle #livros #libros #amoler #ler #literatura #livroinfantojuvenil #Skoob #rpgdemesa #reinos #medieval #contosdefadas #iluminuras #literaturajuvenil
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domingo, 26 de novembro de 2017

A Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma

Quando eu era criança, havia na estante de minha casa uma preciosa coleção de livros infantis, cuja importância para a história da literatura brasileira só fui conhecer décadas depois. Eu e meus irmãos a tínhamos ganhado de uma prima mais velha, Cármen de Freitas Borges, que fora sua dona anterior e "já tinha deixado o mundo das crianças" muitos anos antes.

À época, o que a tornava importante aos meus olhos era o capricho da edição e a diversidade de cenários aos quais a leitura de suas páginas me transportava. Eram doze volumes, de capa grossa, esculpida em baixo relevo, com detalhes dourados na lombada. Trazia historietas de poucas páginas, em linguagem acessível, várias delas ilustradas por xilogravuras e vinhetas. O conjunto era conhecido pelo nome Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma.

Exemplares da Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma,
edição de 1957, após quatro gerações de crianças na família...
Eram doze os volumes da Biblioteca:
  1. Contos da Carochinha
  2. Teatrinho Infantil
  3. Histórias da Avozinha
  4. O Reino das Maravilhas 
  5. Histórias do Arco da Velha
  6. Os Meus Brinquedos
  7. A Árvore de Natal
  8. Histórias do País de Ali Babá
  9. Histórias Brasileiras
  10. Histórias da Baratinha
  11. Contos do País das Fadas
  12. Álbum das Crianças

Essa coleção foi o mais bem-sucedido produto da antiga Livraria Quaresma, inicialmente conhecida como Livraria do Povo. Seu editor-livreiro era Pedro da Silva Quaresma. Em 1894, Quaresma lançava o primeiro dos livros que veio a compor sua coletânea: os Contos da Carochinha, organizado por Alberto Figueiredo Pimentel, que já era conhecido como cronista popular do jornal Diário de Notícias e escritor adepto do movimento realista. Além de Figueiredo Pimentel, autoram alguns dos livros da biblioteca Viriato Padilha, Gondim da Fonseca e Tycho Brahe (não o astrônomo quinhentista, mas sim um escritor brasileiro do começo do século XX).

Sua importância na literatura brasileira é pouco conhecida fora do círculo acadêmico. Pedro Quaresma foi o iniciador da literatura infantil brasileira, precedendo Monteiro Lobato em quase 40 anos. Em fins do século XIX, poucos livros eram produzidos no Brasil, a maioria precisava ser importada de Portugal ou da França. Os títulos disponíveis aos jovens eram, notadamente, obras de cunho cívico-patriota, religiosos ou compilações francesas. A Livraria Quaresma iniciou uma revolução literária ao se propor a produzir livros de qualidade, ricamente ilustrados, com uma linguagem próxima do português coloquial falado no Rio de Janeiro, a preços acessíveis a diversas classes sociais. Incorporando o nome da antiga livraria, Pedro Quaresma, de fato, queria vender livros para o povo.

Anúncio da Livraria Quaresma, em 1957,
no jornal carioca Diário de Notícias.

Sua fórmula parecia mágica, mas, vista de perto, é fácil entender a razão de seu sucesso. Quaresma e seus escritores apresentavam histórias colhidas da tradição oral ou antigas histórias européias sob uma versão abrasileirada, nas palavras de Borges & dos Santos (2008). Havia uma preocupação explícita em promover hábitos desejáveis aos "brasileirinhos" através do prazer da leitura, de modo a contribuir com a formação de uma identidade nacional legitimamente brasileira.

A Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma, e outras que se seguiram em cópia à fórmula, fomentou o hábito da leitura entre os filhos das classes assalariadas de boa parte do século XX, criando nesses um ambiente cultural comum, que é posteriormente ampliando com o Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, tanto em sua forma original, literária, quanto em sua adaptação televisiva, nos anos 70-80, pela Rede Globo. Várias mini-histórias que aparecem na obra de Monteiro Lobato ou na adaptação televisiva eram também histórias dos livros de Quaresma. O próprio registro de alguns contos de tradição oral permitiu manter a memória das contadoras de histórias dos séculos XIX, muitas delas confluência de narrativas trazidas pelos negros da África com mitos ameríndios.

Bem antes de George R. R. Martin, já havia um Cavaleiro
das Flores na Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma

Andréa Leão (2007) narra como uma das consequências das publicações de Quaresma o caso de um menino de 4 anos que era considerado um prodígio por ser capaz de "ler" histórias antes de ser efetivamente alfabetizado. Ela considera que Quaresma teve o mérito de introduzir as crianças brasileiras à narrativa dos contos de fada, familiarizando-as aos livros e revistas.

Sendo uma das minhas primeiras leituras, é claro que a estrutura narrativa dessa coleção de algum modo influenciou minha escrita de O Rei Adulto décadas depois. O próprio apreço a temas de contos de fadas europeus e sua mistura a elementos brasileiros, presente tanto em O Rei Adulto, quanto nos livros de Quaresma, é disso uma pista. Mas quis homenageá-la de modo ainda mais explícito, mencionando textualmente dois de seus livros:

Diversas eram as companhias de marionetes a apresentar, inúmeras e seguidas vezes, peças clássicas do folclore infantil, como O Menino e o Lobo, João e Maria e Os Contos da Carochinha. (Capítulo 1)

Letras prateadas destacavam o título: Histórias do Arco da Velha. Incentivado pelos colegas, o menino tomou o livro entre as mãos e abriu-o ao acaso, sorteando uma página. (Capítulo 27)

Referências

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Não perca as novidades sobre O Rei Adulto

Essa postagem é diferente de outras. Ela se destina a você que gostou da proposta de nosso livro mas quase não recebe as atualizações e novidades. Toda semana há algo novo, mas provavelmente você não soube, e a culpa não é sua, mas sim da plataforma onipresente que mais usamos para interagir socialmente: o Facebook.

Essa imagem foi postada na fanpage O Rei Adulto do Facebook, mas
poucos a verão por conta da política de veiculação dessa plataforma.


Pressupõe-se que quando você curta uma página ou grupo no Facebook, quer receber mais de seu conteúdo pela timeline. Nos primórdios do Facebook, isso funcionava muito bem. Atualmente, o modelo de negócios dessa rede limita substancialmente o que você recebe, inclusive as postagens de seus próprios amigos. As chances de você ver uma postagem são maiores se ela for mais popular: se tiver curtidas, comentários e compartilhamentos. Ao contrário, se ela não tiver ao menos uma curtida, poucas pessoas a verão, mesmo aquelas que curtiram a página ou grupo para, em tese, recebê-las. E isso pode piorar. A tendência para os próximos anos é que o Facebook passe a veicular organicamente nas timelines apenas as postagens que foram impulsionadas (i.e., pagas). Assim, todos os pequenos produtores de conteúdo ficarão inviabilizados, e você só verá suas postagens se criar o hábito de verificar cada página individualmente.

Hoje, a fanpage O Rei Adulto possui 854 seguidores. Mas cada postagem é recebida, em média, por apenas 30-80 destes; às vezes, esse alcance é tão baixo quanto 26 pessoas! Essa estatística se repete para qualquer página ou grupo que você segue, mesmo as de jornais: o alcance orgânico fica em 5-10% do total de seguidores. Se o produtor de conteúdo deseja maior audiência no Facebook, precisa desembolsar. E, mesmo assim, não atinge necessariamente todos os seus seguidores.

É possível diminuir essa perda de conteúdo com uma modificação nas configurações da página ou grupo que você segue. A imagem abaixo mostra como: marque a opção "ver primeiro" nas páginas que você mais gosta.

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O conteúdo que produzimos é para vocês que nos curtem. Não o percam! Em breve teremos uma nova edição impressa do volume 1 disponível para venda. Fiquem atentos!

domingo, 29 de outubro de 2017

Role Playing Games e a aventura imersiva

Estreou nesta semana a segunda temporada da famosa série Stranger Things, que alia monstros, aventura e suspense no melhor estilo dos anos 80. Uma das referências que a série faz é ao jogo Dungeons & Dragons (D&D, para os íntimos), o pai de todos os jogos de RPG. Logo no primeiro capítulo, os quatro meninos da trama são vistos enfrentando no jogo o Demogórgon, uma das criaturas do universo de D&D. Esse é justamente o nome que eles dão ao monstro do Mundo Invertido que captura o jovem Will e passa a atacar sua cidade nos capítulos seguintes. Como se estivessem imersos na aventura criada pelo próprio jogo, os meninos transportam para a realidade os inimigos e o conflito que anteriormente enfrentavam apenas com dados de 8, 10 e 20 lados. Se as referências imersivas forem mantidas na segunda temporada, devemos esperar para os capítulos vindouros o aparecimento da Tessálidra, o monstro multicabeçudo que finaliza a partida de RPG que eles jogavam, no último capítulo da primeira temporada.

Quem nunca jogou RPG pode ter dificuldade em compreendê-lo. Não se trata dos jogos eletrônicos inspirados em RPG, mas sim do clássico RPG "de mesa".

É um jogo, mas não há tabuleiro? As regras são mesmo descritas em vários livros e compêndios? Qual o objetivo, afinal? São algumas das perguntas que os não iniciados costumam fazer.

Um Role Playing Game pode ser melhor entendido se traduzirmos seu nome em inglês: Jogo de Representação ou Jogo de Atuação. Trata-se de um jogo em que os participantes representam papeis ou atuam, de modo a permitir que uma história seja contada de modo interativo e imersivo. Os participantes são personagens dessa história e agem como se ela fosse real, no momento da partida. Não é necessário um tabuleiro, mas regras pré-estabelecidas servem para resolver conflitos e ações, que incluem desde a recepção a uma abordagem pessoal até manobras em combate e dano conferido por determinada arma. Um sistema de RPG é um conjunto dessas regras, reunidas de forma consistente com a abordagem do jogo. Não é obrigatório, mas frequentemente um sistema de RPG é publicado com um mundo próprio ou um cenário de aventuras. Por exemplo: o sistema D&D foi concebido para aventuras medievais do tipo "caça ao monstro", o antigo MERP foi ajustado para aventuras na Terra Média de Tolkien, enquanto o Storyteller privilegia a narração e a atuação sobre o mero combate, num mundo sombrio repleto de vampiros, lobisomens e outros seres inumanos. Também há sistemas genéricos, que podem servir para diversos cenários, como GURPS e D20. Em todos esses casos, um jogador atua como mestre do jogo, sendo o responsável pela narração do cenário, controle dos personagens coadjuvantes, solução dos conflitos, etc. Embora não haja um tabuleiro, é comum o uso de uma folha coberta por uma grade de células hexagonais, que pode ser sobreposta a um mapa, e é usado para controle de situações táticas.

RPGs costumam ser a porta de entrada de um escritor iniciante às histórias de fantasia. A própria necessidade de imersão da aventura pode estimular nesse escritor a característica (ou vício?) de construção de mundos. Para alguns, a construção de mundos é uma atividade levada tão a sério, que acaba destruindo os elementos fantásticos da narrativa — afinal, se exigirmos 100% de realismo dum mundo de fantasia, não há espaço para a magia. 

O escritor Chuck Wendig também acredita que um escritor iniciante pode aprender muito numa mesa de RPG. Em jogos de RPG, o mestre do jogo precisa lidar com os conflitos entre as personalidades diferentes dos jogadores que estão atuando; isso é um grande laboratório para o escritor aprender a contar histórias. Sua audiência está ao lado à espera de uma boa história e contribui para ela, dando ao escritor/narrador aspectos novos da situação que ainda não tinham sido considerados.

Escrever um livro requer habilidade para descrever, elaborar cenários, situações e montar um enredo que cative o leitor. O mestre do jogo tem os mesmos desafios, mas tem liberdade para fazê-lo por meio de palavras, desenhos e objetos visando prender a atenção e obter colaboração de seu grupo de jogadores. Ambos trabalham com a criatividade e justamente por isso uma geração inteira de escritores de fantasia e atores admitem ter sido inspirada pelo velho Dungeons & Dragons, incluindo George R. R. Martin.

Apetrechos de meu antigo grupo de RPG MERP/Rolemaster.

Devo ter jogado D&D propriamente dito apenas uma vez na vida. Minha experiência com RPG iniciou-se mesmo com o Middle Earth Role Playing Game (MERP) e seu "sistema pai", o Rolemaster. Meu grupo de RPG jogava na Terra Média, na península do Andrast e nas planícies costeiras de Anfalas, por volta de 1085 T.A.. Gondor era governada por Hyarmendacil I. Escolhemos um período obscuro da cronologia de Tolkien para termos mais liberdade de ação no jogo.

Era uma atividade realmente imersiva, que frequentemente extrapolava o tempo da partida e se tornava assunto para conversas ao longo da semana. Das demandas da atividade de mestre do jogo, recebi estímulo para aprender a desenhar mapas, estabelecer cenários, narrar lutas, conceber artefatos. Também aprendi a envelhecer papel, encadernar, modelar personagens em durepox, confeccionar runas, entre outras coisas. O RPG e a aventura semanal foram estimulos constantes ao uso da criatividade para tornar ainda mais imersiva a história para meus personagens. Houve momentos em que usei até mesmo música ambiente para incrementar a campanha.

Muitas vezes, a criatividade necessita estímulos. Uma partida de RPG oferece justamente essa pletora de estímulos, ao nos colocar atuando em contextos completamente diferentes de nosso dia a dia.

Cena do capítulo X de meu livro O Rei Adulto, que lembra mais claramente uma
partida de RPG. As aventuras das crianças em busca do irmão mais velho de
Êisdur, que abandonou o Mundo Infantil após chegar à adolescência, pode deixar
o leitor com a impressão de que toda a história é uma partida de RPG que se
desenrola na imaginação delas.

O RPG de mesa funciona como a mediação entre o instinto de construção de mundos do mestre do jogo e a fantasia inesperada trazida pelos jogadores. Uma campanha de RPG não têm fim pré-estabelecido, há apenas o cenário construído pelo mestre, no qual os jogadores atuarão e buscarão as glórias das façanhas dignas de serem narradas como lendas.

Qual sua relação entre RPG e literatura? Comente abaixo.

Se você nunca jogou RPG e interessou-se, pode baixar as regras básicas do jogo gratuitamente neste endereço.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Bento que Bento é o frade

Era um folguedo divertido. Sempre que havia tempo vago, entre uma aula e outra, lá estávamos nós a declamá-lo!

— Vamos brincar de Mestre? — era o convite irresistível para um momento de desafio à valentia e um afago no doce sadismo infantil, típico de púberes.

Colagem de iluminuras dos pergaminhos medievais Comentario al Apocalipsis
do Beato de Liébana, e Commentary on Daniel, de Jerome, ambos do século X
(manuscrito Add MS 11695 na British Library, folios 23v, 223 e 228v); ilustrações
distribuídas sob a licença Creative Commons CC0 1.0 pela The British Library.

O primeiro mestre era eleito no Zerinho ou Um, o pleito sagrado das crianças, nunca questionado pelos perdedores. Tão logo empossado, questionava nossa lealdade às suas ordens, recebidas com brados igualmente eufóricos, como fôssemos nobres vassalos de um grande senhor:

— Bento que Bento é o frade!
— Frade!
— Na boca do forno! 
— Forno!
— Tudo que seu mestre mandar?
— Faremos todos!
— Se não fizer?
— Levaremos um bolo

E começavam seus desafios: corra até o muro e volte o mais rápido que puder!, traga-me uma flor branca!, pule cem vezes!, imite uma tartaruga! faça isso!, faça aquilo!

Mas, às vezes as ordens podiam ser mais perturbadoras: puxar o cabelo de alguém que estava fora da brincadeira, sujar a roupa de lama, etc.

Todos queríamos ser mestres, e justamente por isso empenhávamo-nos em cumprir as ordens da melhor forma possível. Era a única forma de ascender e chegar àquela posição de mando, quando poderíamos apresentar desafios ainda maiores e elaborados, além de ir à forra com o mestre anterior.

Pois o folguedo era claro: quem não cumpria a ordem, levava um bolo.

O "bolo" era um tapa na mão espalmada, que apresentávamos ao mestre para a aplicação da pena. O mestre inquiria se o queríamos quente ou frio, uma senha para forte ou fraco. Éramos jovens em busca de autoafirmação, e a pressão para receber o bolo quente era enorme; mas sempre contávamos que ele viria morno, se o mestre fosse um amigo próximo, que o compadrio já começa na infância... E afinal, bolo quente demais poderia ser retribuído na rodada seguinte, quando o mestre se tornasse súdito; o melhor era não arriscar muito no castigo.



A brincadeira é conhecida em vários estados brasileiros. Há registros no Pará, Mato Grosso, por todos o Nordeste, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo... Alguns a chamam "Boca do Forno", "Boca de Forno", "Jogo do Frade" ou "Bento que Bento Frade". Há variantes nas ordens e em suas respostas; provavelmente efeito de um "telefone sem fio", de tradição oral reproduzida de memória por mais de um século, por pais, tios e avós, e irmãos e primos mais velhos.

Cecília Meirelles, João do Rio e outros estudiosos da cultura brasileira mencionaram-na. A origem da brincadeira parece fazer alusão a atos culinários do forno do Frade Bento. No Espírito Santo, em 1876, a estrofe mantinha essa alusão clara: Bento que bento ao frade? / Frade! / Aonde quereis que vade? / Vade! Na bocca do fôrno / Fôrno! Buscar um bôlo / Bôlo!  Isso também de vê numa crônica de 1867, escrita em Taubaté: o Bento que Bento frade já não grita p'ra que se tire os bolos, nas matinas, da bocca de um forno.

Se isso já era comentado nesses termos em 1867, a tradição deve ser ainda mais antiga, dos setecentos ou começo dos oitocentos, provavelmente ligada à colonização portuguesa ou à cataquese, considerando a extensão de seu conhecimento pelo território brasileiro.



Não me recordo quando foi a última vez que brincamos de Mestre. Aos doze anos de idade, já não era mais uma opção de passatempo: o futebol e o vôlei na quadra escolar suplantaram-no. Deixávamos de lado sua ode ao desafio individual e à tirania do mandatário do turno por uma atividade mais coletiva, um espírito de time (embora alguns fominhas ficassem plantados diante na pequena área à espera da bola, como se nada mais importasse na pelada).

Talvez brincadeiras como o Mestre, mesmo tingidas por uma ordem hierárquica, servissem para que treinássemos nossos limites e a empatia perante nossos colegas. Ordens injustas ou profundamente vexatórias seriam repudiadas e o mestre sofreria críticas, como em qualquer sociedade; já as ordens e desafios inteligentes eram recebidos com prazer, pois a diversão consistia justamente em não saber o que seria exigido e surpreender-se com sua própria capacidade de cumpri-lo.

domingo, 22 de outubro de 2017

A construção do Neotamano

Era uma aposta arriscada: introduzir variação linguística nos diálogos das personagens, de modo a caracterizar culturas diferentes de um mundo de fantasia ambientado numa alegoria da infância. A decisão foi tomada em 1998 e acabou influenciando toda a história que eu escrevia, alimentando um enredo de fundo.

Considerei que essa variação precisava ser consistente e soar suficientemente diferente para que o leitor a notasse, mas não tanto a ponto de ser incompreensível. Foi uma decisão trivial adotar para uma o português brasileiro e para outra o de Portugal; bem mais fácil do que garantir que os diálogos estivessem, de fato, escritos nessas variantes.

Hachurada em amarelo, a região onde o neotamano
se desenvolveu, junto às duas capitais do novo
Reino Unificado do Tamatich.
Eu precisava, ainda, de uma variante histórica. E foi aí que mais introduzi a liberdade de um mundo de Fantasia. As crianças do Tamatich foram descritas como tradicionalistas, apegadas a valores do passado; além disso, o Tamatich foi apresentado como um reino unificado, composto por duas antigas potências rivais, a belicosa e leal Tamma e a artística e sofisticada Ticch. Pareceu-me que o português medieval cairia bem para a antiga Tamma, mas não para Ticch. E o português etimológico, do século XIX, cheio de palavras eruditas incorporadas para nomear os objetos do estudo científico, era a cara de Ticch, mas jamais a de Tamma. Decidi então usar uma variante artificial, que mesclasse elementos de ambas as fases históricas, como se decorresse do convívio forçado que tammanos e ticcos passaram a ter após a unificação.

A esse dialeto artificial dei o nome de "neotamano", em alusão ao idioma mais arcaico falado em Tamma, o "tammanor".

Embora fosse artificial essa variante, não queria que ela fosse completamente arbitrária, mas sim que refletisse fatos históricos da língua portuguesa. Foi por isso que construí o neotamano (bem como o tammanor) a partir de gramáticas históricas e estudos da evolução do Português.

Algumas das referências usadas para construir o neotamano.
As principais características do neotamano são as seguintes:
  1. A ortografia baseia-se naquela do começo do século XIX, antes da reforma ortográfica de 1911. Desta forma, usa-se palavras com ph, y, cc, ll, etc.
    Cabe-me alembrar-vos de que, consoante as ilustres regras do bom-fallar neotammano
  2. Embora correspondam a um outro período histórico do nosso idioma, a acentuação inclui os acentos diferenciais de timbre introduzidos em 1943 e abolidos em 1971.
    Nom creo que teria êsse novo govêrno
  3. Várias palavras apresentam variações decorrentes de evoluções históricas fictícias que teriam resultado em termos dialetais nos dias atuais. Ex. somana, em vez de “semana”; acaecer, em lugar de “acontecer”; conhoscer, em lugar de “conhecer”.
    Alende isso, sempre vivemos às imigas co elles.
  4. Há distinção entre as preposições por (consequência) e per (instrumento) e suas derivações pelo (a/s) e polo(a/s).
    Nom credito que acá só polo prazer da caçada estejais...
  5. As palavras cujo plural terminam em –ões são escritas no singular com –om (tal como no português medieval). As palavras que terminam em –ães têm no singular –ám. Somente aquelas que fazem plural em –ãos têm –ão no singular.
    na condiçom de princeza do Reino Unificado
  6. A ordem da frase é um tanto irregular, cheia de inversões, tal como no português de 1600. Há uma tendência a colocar no fim o termo principal, geralmente o verbo.
    A chave dêste enigma poderia, destarte, em Ístar algures estar
  7. O uso de pleonasmos, frases feitas e adjetivações desnecessárias é constante. Estes adjetivos frequentemente são incorporações latinas tardias. Ex: os feros animais; seus próceres amigos; mui mestos e peligrosos eventos.
  8. As subordinações são mais frequentes do que as coordenações.
  9. Os pronomes de tratamento são parte fundamental da estrutura hierárquica que a língua guarda. O uso de tu, nós, vós, etc, relaciona-se intimamente com a atitude do falante perante o(s) ouvinte(s).
  10. Há frequentes conjuntos de conjunções adversativas de valor idêntico.
    Mas, contudo, todavia, hemos também nós...
  11. Há três séries de pronomes demonstrativos: este (a) + isto, esse (a) + isso e aquele (a) + aquilo; e duas séries de demonstrativos reforçados: aqueste (a) + aquisto e aquesse (a) + aquisso.
    A culpa é daquesse pulcro candeeiro 
  12. O gerúndio é evitado ao máximo. Em seu lugar, usa-se uma locução verbal formada pela preposição a e o infinitivo do verbo.
    Peço-vos notícias da estrada e de vosso paiz, porquanto lá estamos a ir.
  13. O particípio de verbos da 2a Conjugação termina em –udo.
    em intensidade a cada dia tem cresçudo
  14. Quando os pronomes oblíquos o ou a (bem como suas formas plurais) são usados após verbo no infinitivo, o r do infinitivo transforma-se l: fazer + o = fazel-o.
  15. Os pronomes oblíquos são sempre atraídos por advérbios, palavras de sentido negativo ou conjunções. São usuais as combinações do pronome oblíquo com pronome demonstrativo: mo, to, lho, etc. As combinações de nos + o(s), nos + a(s), vos + o(s) e vos + a(s) produzem, respectivamente, nol-o(s), nol-a(s), vol-o(s), vol-a(s).
  16. Quando os pronomes demonstrativos o ou a (bem como suas formas plurais) são usados após palavra que termina em vogal nasal, eles se modificam para no (s) ou na (s), independentemente da palavra que o antecede. Se esta palavra terminar em s ou r, eles se modificam para lo (s) ou la (s) e o s ou r cai.
    nom no conhocem meus bravosos meninos-d’armas
  17. Alguns advérbios e conjunções têm formas arcaicas: acá = aqui, alá = lá, assi = assim, quási = quase, ca = que (em sentido concessivo ou explicativo), perém = porém, etc.
  18. A forma usual do futuro composto com o verbo haver é haver-de + verbo principal no infinitivo.
    Há-de perdoar-me, Vossa Valentia, por êsse incómodo malentendimento
  19. Há uma forma arcaica de pretérito perfeito formada pelo verbo haver seguida do particípio passado do verbo principal. Ex: Há dito = disse.
    hoje qual guarda se vestiu e entrar ascondudo há tentado
  20. Cada verbo possui um particípio presente formado pelo acréscimo de –ante, -ente ou –inte ao tema da respectiva conjugação.
    um caçador passante por nossas terras.
Achou divertido? Que tal conhecer mais sobre o neotamano e os tamatiscos no livro O Rei Adulto?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Os brasões


Em O Rei Adulto, os brasões dos reinos infantis representam traços adicionais da cultura de cada povo. Mesmo seus formatos diversos não são aleatórios: a maioria se baseia em formatos tradicionais da heráldica europeia.

Foram criados em 1997, quando comecei a sentir necessidade de referenciar-me à história e aos símbolos nacionais dos reinos infantis:

No peito, tinha um medalhão com o brasão de Baltar; no broquel, levava seu próprio brasão cinzelado: em campo azul, um unicórnio dourado. O azul era a cor da Ordem dos Cavaleiros de Baltar, e o unicórnio era símbolo do Tamatich, cujo direito de uso lhe fora concedido após a Grande Busca. (O Rei Adulto, Cap. 4.)

Vôlmer entregou a Wáldron um pequeno bastão de madeira, pintado em faixas alternadas de vermelho e branco, que eram as cores oficiais da Macebólia. Nas pontas havia um barbante dourado enrolado e colado na madeira, para dar ao bastão um toque especial. Wáldron ficou olhando meio perplexo para o bastão. Aquilo era um cabo de vassoura que eles mesmos tinham cortado e pintado! Ao menos, imaginação tinham de sobra... (O Rei Adulto, Cap. 19.)

Sendo o Tamatich o reino mais tradicional e conservador, seu escudo tem o formato ogival ou português primitivo (também chamado francês medieval). Teres e Landau usam o formato português clássico (ou ibérico), de fundo arredondado. Nota-se ainda, no brasão de Landau, uma similaridade com brasões municipais brasileiros, com suportes e divisa, posto que Landau é a única república em meio às monarquias. Guaipur usa um escudo com formato inglês, que se liga à sua preferência por aventura marinheira --- sendo a Inglaterra uma ilha, sua expansão sempre dependeu de uma marinha forte. A Macebólia usa um formato de escudo alemão, coerente com outros traços de sua cultura. Eix usa um escudo praticamente quadrado, devido à mania de seu povo em ver o mundo em caixinhas... Já Ístar escolheu uma pipa, que exalta as diversas pipas altaneiras em seus céus, bem como os valores rueiros de seu povo.

Abaixo, informações mais específicas de cada escudo.


Tamatich. Escudo ogival (português primitivo), talhado de verde e vermelho, com um unicórnio dourado saltante sobreposto. O vermelho representa o antigo reino de Tamma, enquanto o verde representa o antigo reino de Ticch; de sua união surgiu o Tamatich. O unicórnio dourado marca sua profunda ligação com os contos de fada, cavalaria e fantasia.
Teres. Escudo português clássico, esquartelado, com borda branca. A pala xadrezada faz referência às Guerras do Alimão, quando Teres conquistou diversos reinos vizinhos. A cruz pátea representa, na verdade, como Teres se vê: no centro das rotas que partem para o norte, o sul, o leste e o oeste (o que não é bem verdade, pois é o reino mais isolado...).

Laundau. Escudo português clássico, cortado em ponta, vermelho e amarelo, com uma banda vermelha cozida à ponta, suportes e divisa. No franco quartil, uma enxada e um ancinho amarelos cruzados em aspas, símbolo do trabalho que dignifica o campesino. Os três besantes (círculos) dourados da banda inferior representam as primeiras províncias landaucas. A divisa traz o famoso lema da revolução: Coniunctus Populus Nunquam Vincetur (O povo unido jamais será vencido), euforicamente bradado durante a queda da monarquia após a Guerra das Águas.
Guaipur. Escudo inglês, azul com ondas em amarelo, carregando um navio visto de popa e um sol poente alaranjado em abismo (ao fundo). O navio, sol e ondas representam a paixão guaipurina pela aventura no mar.
Macebólia. Escudo alemão branco, com um repouso de lança à direita, terçado em contrabanda vermelha, carregada de quatro torres marrons, com uma flor de lis preta no cantão esquerdo da ponta. É o único dos escudos que usa um timbre: a árvore frondosa, que representa a floresta de Grínkor. As torres da contrabanda representam os quatro reinos que se uniram para formar a Macebólia, enquanto a flor de Lis é o símbolo de sua capital Lyrnyra.
Ístar. Escudo em forma de pipa, preto flanqueado de verde, com uma estrela e crescente amarelos e brocantes (ao centro), partido em asna amarela carregando uma serpente rampante verde, com a rabiola amarela disposta como uma divisa. O significado do brasão é uma provocação aos demais reinos: os ístaros pretender dominar o espaço aéreo, tanto quanto as terras vizinhas.
Eix. Escudo aproximadamente quadrado, partido de branco e preto; brocante, de um no outro, a águia real bicéfala dos eicsos. Tanto a forma do escudo quanto suas cores representam como os eicsos em geral veem seu mundo: sem nuances, ou isso ou aquilo.

domingo, 24 de setembro de 2017

A Guerra das Águas

 

As crianças sempre viviam em clima de guerra, e raro foi um ano passar totalmente em paz. Muitos sabichões tentaram precisar as causas dessa hostilidade, mas só conseguiram descobrir que toda criança parece possuir predisposição para qualquer tipo de combate e que tal natureza bélica é mais evidente em meninos. As guerras parecem ter sido uma das atividades mais populares entre as crianças.

Dizem as lendas que tudo começou com uma bolinha de papel tacada, por ninguém sabe quem, em alguém que parece não ter gostado. Esse único fato gerou a Primeira Guerra das Bolinhas de Papel, também chamada “A Mãe das Batalhas”.

As batalhas foram se tornando mais sofisticadas a cada ano, e todo um arsenal era desenvolvido. Os reinos lançavam-se nos conflitos por qualquer provocação, sem medir consequências. Há registros de Guerras de Espumas de Sabão, de Lama, de Bolas de Neve (famosas guerras sazonais de inverno), de Tinta, de Frutas e Ovos Podres (que podiam empregar frutas e ovos frescos, quando os podres acabavam), de Carrapichos, de Sementes de Mamona, Caroços de Azeitona, Almofadas, Amêndoas, etc., além das nobres e irresistíveis Guerras de Bolinhas de Papel.

Mas os conflitos não se restringiam apenas ao lançamento desordenado das coisas que davam nome à guerra. Nos bastidores dos palácios havia uma complicada rede de espionagem e alcaguetagem que colhia fofocas, espalhava boatos e sabotava os planos dos inimigos. Alguns reinos possuíam até um batalhão de feiticeiros para garantir vitória plena e rápida.

Consta ter havido uma única Guerra das Águas, ao menos em tempos recentes. Oficialmente, ela teve início quando Azei, príncipe ístaro recém-coroado, em viagem diplomática por Landau, foi recebido com um balde de água fria, arremessado por desconhecidos de cima dum prédio. Profundamente irritado, Azei prometeu que iria à forra. Meses depois, ele deu início à guerra, ao invadir o Sul de Landau com grande exército, munido de pistolas aquáticas, metralhadoras de jato d’água e granadas hidráulicas. Foi o estopim para um grande conflito, que rapidamente se espalhou aos demais reinos.

Inicialmente, cada soldado levava às costas um barril de água para garantir que houvesse munição disponível. Mas as primeiras batalhas e o entusiasmo das tropas demonstraram que era necessária uma quantidade maior de água. Quase simultaneamente, os reinos iniciaram a construção de piscinas próximas às zonas de conflito, para abastecer os exércitos. E assim foi levada a guerra, durante cinco anos, sem que qualquer reino obtivesse vantagem significativa.

Até que uma manobra desleal foi tramada por Ístar: o represamento do Lenx, o enorme rio que cruza diversos países em sua viagem ao mar. A tática ístara era dupla, uma vez que, ao mesmo tempo em que impedia que os reinos ribeirinhos renovassem seus estoques aquáticos, ainda possibilitava aos ístaros guardar somente para si a preciosa munição. Quando o Lenx secou, a tramoia dos ístaros foi revelada e a guerra tomou novo rumo. Eicsos, tamatiscos e landaucos tentaram de todas as formas impedir o represamento, fosse diplomática, fosse subversivamente, mas sem êxito. Para piorar a situação, Teres resolveu também represar os rios que nasciam em seu território, sob a alegação de serem patrimônio nacional.

Para que a guerra fosse mantida, os reinos que não tinham nascentes iniciaram a apropriação de poços, lagos, lagunas, lençóis d’água e tudo mais, numa atitude de desespero, declarando-os confiscos de guerra e impedindo o acesso à plebe. Alguns soldados, isolados no campo de batalha, só podiam lutar com o pouco que tinham à mão, o que na maior parte das vezes era o próprio xixi.

O poder de fogo dos reinos montanhosos era, entretanto, indiscutivelmente maior. Ístar demonstrou-o ao tomar de assalto de uma só vez todo o reino de Eix (e dizem que sem derramar uma gota d’água sequer!). No sudoeste tamatisco, Teres iniciava uma série de conquistas, e, ao Norte, Guaipur, que contava com infinitas reservas da terrível água salgada, por arder nos olhos, ocupou a Selúnia e avançou sobre Púrpura.

Mapa do conflito

Mas as consequências não tardaram a ser sentidas. A seca assolou os reinos do Tamatich, Landau e boa parte da Macebólia, arruinando a agricultura e a pecuária. Deu-se início a uma feroz Guerra Civil de Pedras e Cascalhos pelo controle de poços e fontes de água. Nas montanhas, Teres e Ístar experimentaram, por sua vez, as piores enchentes já vistas em todo o mundo, ocasionadas pelo represamento dos rios. As enchentes destruíram fazendas, castelos e cidades, fazendo aparecer terríveis pestes.

O reino que parece ter sofrido menos na guerra foi Guaipur. Esse fato foi largamente utilizado pelos guaipurinos como atestado de vitória, e ainda o é, muito embora os sabichões especializados no evento afirmem que, no cômputo geral, a Guerra das Águas não apresentou vencedor. As razões apresentadas pelos guaipurinos são que seu reino não sofreu enchente; que falta d’água foi um assunto cogitado apenas por aqueles que procuravam desculpas para não tomar banho; e que nenhum outro reino poderia barrar-lhes o avanço para o sul, pois estavam mais equipados e em maior número.

Passados anos após o último combate da guerra, tendo os reinos infantis em sua maioria se recuperado, deu-se início na cidade de Estel del Baixo Goles, no Sul tamatisco, a conferência de paz que viria a ser chamada Trégua Seca.

As consequências mais importantes da Guerra da Águas e da Trégua Seca foram: o enfraquecimento do Tamatich como potência líder do mundo das crianças; a queda da monarquia landauca, vítima da revolução civil que implantou a primeira e, por muito tempo, única república infantil de que se tem notícia; a anexação de Eix ao território ístaro; e a criação das províncias tuteladas, também chamadas províncias-reféns.

Parte do texto acima foi publicado no apêndice A Guerra das Águas, em O Rei Adulto, vol. 1 - Oeste. Compre seu exemplar aqui!

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Usando dialetos para representar a variação linguística em mundos de Fantasia

Alguns autores de Fantasia gostam de marcar de forma bem distinta as diferentes culturas de seu mundo. Em alguns casos mais elaborados (leia-se, tolkianescos), essas diferenças podem chegar ao nível linguístico, envolvendo idiomas distintos e/ou dialetos.

Azulejos na Casa do Barreiro, Gemieira, Viana do Castelo, Portugal. Um poema
de Francisco Sá de Miranda. Licença CC BY-SA 3.0, por José Gonçalves.

A história de Tolkien é conhecida: linguista, criou inúmeros idiomas e, posteriormente, uma história épica que os justificasse. Mas o mais comum é que o escritor crie os idiomas pari passu à criação de seu mundo.

Um idioma artificial usado em obra de fantasia e ficção científica tem lá seus atrativos. Mas, a não ser que o autor seja um novo Tolkien, penso que tal criação deva ficar restrita a poucas, específicas frases. Pois o leitor não dominará o idioma artificial usado na história e, em se depararando com longos parágrafos indecifráveis, terá pouca paciência para prosseguir.

Neste caso, acho mais interessante o uso de dialetos e variantes linguísticas, ainda que algumas sejam um tanto artificiais.

Suponha que em um mundo fantástico, o idioma comum seja o Xyplyzd (ou qualquer outro). Todos entendem o Xyplyzd, mas alguns povos o pronunciam de forma ligeiramente diferente, pois imprimem a ele seus sotaques e vícios linguísticos. Um autor minucioso pode criar a gramática do Xyplyzd e escrever todos os diálogos de sua história em Xyplyzd. Mas talvez tenha dificuldade em encontrar leitores interessados em aprender o Xyplyzd para conseguirem entender a história.

Todavia, esse autor pode pensar doutra forma: todos os personagens em seu mundo fantástico entendem o Xyplyzd, mas a história precisa ser escrita para um público lusofalante (ou anglo-, franco-, hispanofalante, etc.). Nesse caso, podemos considerar que todos os diálogos em Xyplyzd estão apenas sendo representados traduzidos para o Português. Essa ideia permite o uso de dialetos do próprio Português como representantes das variantes do idioma imaginário original Xyplyzd.

Note que não há necessidade de que os dialetos empregados sejam existentes no nosso mundo real, pois o gênero Fantasia dá liberdade para a criação não apenas de mundos fantásticos, mas também de recursos linguísticos fantásticos. Esses dialetos podem refletir características dos próprios povos que não usam majoritariamente o idioma comum. Por exemplo, um povo muito isolado e acostumado a viver em carestia pode ter dificuldade de lidar com o conceito do plural, que não existiria em seu próprio idioma (o qual chamaremos de Zyfd); quando se exprimem no idioma comum, esse traço de ausência de plural acaba contaminando sua fala. Assim, se usarmos o Português para representar os diálogos em Xyplyzd, podemos usar frases sem plural ou com plural errado para representar os diálogos em Xyplyzd dos falantes nativos do Zyfd. Esse exemplo apenas serve para representar que os dialetos usados pelo autor não precisam seguir modelos preexistentes do mundo real.

A principal preocupação do autor deve ser criar dialetos e variantes inteligíveis e coerentes entre si. Precisam ser inteligíveis, para que o leitor apreenda o sentido da frase sem muita dificuldade -- justamente por isso, não se usou um idioma puramente artificial. E precisam ser coerentes entre si, pois o leitor irá exigir isso.

Seja quais forem suas escolhas de representação linguística, elas devem ser justificáveis pela própria história. Um personagem pode falar latim corretamente (se tiver anos de estudo formal) ou de forma errada (se vier de classes mais humildes). Mas, por exemplo, se ele é um anjo em missão na Terra não deveria misturar aleatoriamente palavras em português no meio duma invocação supostamente solene em latim, sem que haja um motivo na história que explique isso. Do contrário, o leitor ficará com a sensação de que é o autor quem, de fato, não sabe latim, e não seu personagem.

Em "O Rei Adulto", uso algumas variantes históricas e regionais para representar os idiomas dos reinos infantis. São cinco os principais idiomas (representados por "dialetos"): o nortenho, o sulino, o gandaio, o neotamano e o tammanor. Usei diálogos escritos em cada um deles. Há uma comparação entre esses dialetos aqui. Para manter a coerência, criei um documento com as "regras" de cada um desses dialetos, para me ajudar a separá-los. Feito isso, separei todos os diálogos de um determinado dialeto em um documento próprio (por ex., um documento de diálogos nortenhos, outro para diálogos sulinos, etc). Depois, corrigi todos diálogos de acordo com o conjunto de regras correspondentes. Por fim, após a correção, incorporei diálogo por diálogo, em sua posição devida no livro. Essa descrição pode dar a impressão de ter sido algo muito trabalhoso, mas foi menos do que tentar corrigir os diálogos isoladamente ao longo da história, mesclando regras gramaticais de cada parágrafo à medida que se sucedessem.

Se tiver interesse em verificar o resultado final, adquira seu exemplar de O Rei Adulto. Se já o leu, deixe aqui seus comentários!