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domingo, 7 de agosto de 2016

A história por trás da estória. I

Um história de Fantasia épica, escrita em português, ambientada num mundo povoado apenas por crianças? Como surgiu tudo isso?

Às vezes causa surpresa a amigos, alunos e colegas de profissão a revelação de que escrevi um livro de Fantasia. Essa surpresa é ainda maior quando atentam para o tamanho do livro (242 mil palavras) e para o período em que ele foi escrito: ao longo de 10 anos, entre 1991 e 2001. Durante a década do desenvolvimento desse projeto, três grandes, imprescindíveis, etapas da vida acadêmica, tomaram meu foco elaborativo: o TCC do curso de graduação, em 1993; a dissertação de mestrado, em 1996; e a tese de doutorado, em 2000.

Em postagem anterior, expliquei que O Rei Adulto começou a ser escrito após eu ler A História Sem Fim, de Michael Ende. Antes disso eu já escrevia poesias e alguns contos e vinha tentando elaborar alguma história mais longa, mas invariavelmente não conseguia desenvolvê-las além de algumas páginas. À época, eu jogava RPG e, inspirado pelo livro de Ende, cogitei escrever uma aventura sobre um menino que enfrentaria dragões -- um tanto clichê, é verdade... Mas aconteceu algo diferente: a estória que eu comecei a rabiscar ganhou asas e foi fluindo, tomando um rumo próprio, afastando-se dos dragões. Eu senti que cada personagem, de certo modo, tinha vida própria e fui deixando que suas personalidades se manifestassem e me conduzissem. 


No primeiro ano, eu manuscrevia a estória nas folhas não usadas dum caderno universitário. A imagem acima é uma fotografia da primeira folha desse manuscrito, juntamente com um índice preliminar que eu ia completando à medida que novos capítulos iam sendo elaborados. Muito dessa primeira folha foi aproveitado na versão final de O Rei Adulto, mas várias correções, acréscimos e o amadurecimento da escrita enriqueceram a narrativa:

(antes) "A vila Birtad respirava um outro dia de mercado. As ruelas estavam lotadas de gente que acorriam de toda parte para comprar, vender ou trocar."

(depois) "Começava um novo dia de feira em Baltar. Em ocasiões como essa, a cidade era tomada por flâmulas coloridas, desfraldadas das janelas dos casarões mais nobres. As ruelas se apinhavam de crianças acorridas de todos os cantos de Teres. A praça principal tornava-se um azafamado empório ao ar livre, onde se vendia e se comprava quase tudo

No começo de 1992 eu consegui comprar uma máquina de escrever portátil e dactilografei as primeiras quarenta folhas manuscritas em laudas. Essa tarefa me deu a primeira oportunidade de reescrever, ampliar e corrigir parágrafos inteiros dos primeiros capítulos, alguns dos quais estavam anotados e rasurados no manuscrito. Todavia, logo percebi que era mais difícil desenvolver novos capítulos diretamente na máquina de escrever e tornei a manuscrever.

Entre 1993 e meados de 1995, o ritmo da escrita diminuiu consideravelmente. Esse período corresponde ao fim da graduação na UFRJ e começo do mestrado na USP. As demandas da vida acadêmica forçaram essa pausa, mas a vida dos personagens também tinham me levado a um longo impasse: eles tinham acabados de ser presos em Lyrnyra, capital da Macebólia, e eu precisava encontrar uma forma de tirá-los de lá. Esse incidente introduziu um novo elemento à história: um antagonista. Até então, a história se desenvolvia como uma série de crônicas de viagem. A cada um ou dois capítulos, o grupo de crianças em busca do rei Adulto chegava a uma nova cidade, uma série de novos personagens era apresentada e um caso ou mini-história particular era desenvolvida. Em Lyrnyra, a história passou a se desenvolver como um confronto entre o grupo de Êisdur versus o príncipe Soslaio e o uso das plantas de imaginar.

Em 1996, os aventureiros finalmente chegam a Eix e um novo impasse surge, que coincide com a necessária pausa para eu finalizar minha dissertação de mestrado. Desta vez, o impasse fica por conta do romance que vai surgindo entre Harsínu e Ctara e de grande cuidado para mantê-lo dentro da temática do mundo mirim.

Em fins de 1997, comprei meu primeiro computador pessoal e passei a digitar todo o material que se encontrava manuscrito ou dactilografado. Tal como em 1992, aproveitei para reescrever trechos e padronizar vários nomes e topônimos que foram mudando à medida que os anos passaram. Só após digitar tudo de Teres a Eix, encontrei uma solução para o impasse entre Harsínu e Ctara e prossegui no manuscrito. Mas não demorou muito a que eu passasse a escrever os capítulos posteriores diretamente no computador.

De 1999 a 2001, várias mudanças ocorreram. O conflito entre o grupo de Êisdur e o "grupo" de Soslaio intensificou-se e recrudesceu. O tema "plantas de imaginar" ganhou tanto destaque quanto o próprio tema "Rei Adulto" e os capítulos escritos nesse período acabam por caracterizar quase um livro em separado. O texto já digitado foi várias vezes corrigido e editado e alguns capítulos foram incluídos entre os dez capítulos iniciais, após eu considerar que certos vínculos afetivos entre as personagens precisavam ser mais bem construídos.

Em 2001, com viagem marcada para iniciar um pós-doutorado nos EUA, impus a mim mesmo que a estória precisava ser concluída. E fiz um esforço final entre janeiro e maio de 2001 para completá-la. 

O Rei Adulto é uma estória sobre o amadurecimento. Durante sua produção, tanto as personagens, quanto seu próprio autor amadurecem. Isso teve um efeito inesperado, embora positivo, na narrativa: talvez, se eu a tivesse escrito toda em 1991, não conseguiria entender e descrever o problema a que me propunha, pois não teria ainda a vivência necessária.

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